A força do sagrado e a graça do perdão
Bráulia Ribeiro reflete sobre a importância dos símbolos religiosos na fé cristã
Era de tardinha quando minha mãe nos chamou do quintal onde brincávamos e nos reuniu ajoelhados na frente do crucifixo da sala. Meus irmãos pequenos não entenderam muito. Eu, com seis anos, era a mais velha de cinco crianças e tinha acompanhado os passos frenéticos de minha mãe durante a tarde, entrando e saindo do quarto onde meu pai estava prostrado.
Não tínhamos telefone e o ponto de ônibus mais próximo ficava a uns 20 minutos de caminhada. Meu pai estava inconsciente, em coma, na cama. A única saída que minha mãe viu para a situação foi reunir os filhos e pedir a misericórdia do Senhor.
O crucifixo, o corpo de prata numa cruz de ébano, herdado dos avós, nos olhava circunspecto, mas irradiava esperança. A firmeza da madeira escura e o brilho da prata refletiam dois milênios de tradição simbólica. Refletiam a jornada de uma fé à prova de perseguições, guerras, fogueiras, fornos crematórios, gulags, decapitações em massa, exclusão civil, escárnio intelectual, escrutínio científico, entre muitos outros ataques.
Rezamos ali reunidos o Pai Nosso com a consciência de que nosso desespero seria ouvido pelo Pai. Passados alguns minutos, minha mãe ouviu meu pai se mexendo na cama, pedindo um copo d’água. Foi o primeiro milagre que presenciei na vida e marcou minha fé de maneira indelével.
Hoje não sou mais católica, mas não posso desprezar os símbolos que comunicam a mim e a outros os elementos da minha fé. A torre da catedral ou a torre mais humilde da igreja batista missionária têm sempre um significado maior do que os meros tijolos e cimento que as sustentam. A torre aponta para o céu, significa a transcendência da vida, do destino, da sociedade. Não somos daqui — a torre nos diz, apontando para o céu.
Até o ato de dar o dízimo, atacado por tantos, enfatizado no meio evangélico e por isso alvo de muitos ataques, é um símbolo da generosidade cristã: meu dinheiro não é meu, é maior do que eu, pertence ao Rei e ao Reino. Neste ato simbólico de renúncia material, realizo o meu compromisso com o Deus que me criou. As músicas de adoração, tocadas nas reuniões antes de ouvirmos a palavra do padre ou do pastor, também funcionam como ensaios simbólicos de nossa espiritualidade. Teólogos modernos unem suas vozes aos críticos da manifestação de adoração pública, dizendo que a verdadeira adoração “acontece no coração”. Igrejas podem ser fechadas porque a fé verdadeira não é afetada com isso — o ato de congregar-se é uma atividade “não essencial”. Concordo que as pessoas podem até cantar sem pensar. Mas não se pode diminuir a importância da reunião, do ritual, do canto em grupo. Podem não ser o meu louvor em si mesmo, porque a adoração, segundo a Bíblia, é trabalho, não é algo subjetivo ou de “coração” como querem os defensores da subjetividade religiosa. Podemos até argumentar que o trabalho é o ato de adoração essencial, que se processa no meu dia a dia, na rua, no lar. Mas, ao mesmo tempo, a participação em rituais coletivos é um ensaio terrestre da minha rendição final a Ele na eternidade. São a afirmação de que pertenço a uma comunidade metafísica, unida pela fé, um corpo social de irmãos que, como eu, professam amor a Deus acima do amor a si mesmos.
O simbólico é essencial porque é a expressão de minha relação inefável com o Salvador e expressa de maneira terrena uma verdade celestial.
O protestantismo se distanciou dos símbolos religiosos não por uma questão teológica, ao contrário do que muitos pensam, mas por uma estratégia de diferenciação política. O fato é que o símbolo continua sendo tão importante na conversa sobre o divino nos meios teológicos protestantes quanto o discurso doutrinário. Nossas mensagens do púlpito, músicas, danças e cerimônias são povoadas por símbolos, como não pode deixar de ser em qualquer sociedade humana. Discordo de teólogos que defendem a abstração da fé protestante como um fundamento primordial. Não existe fé completamente abstrata. Não existe fé nas nuvens, num vácuo social e cultural. Este tipo de fé seria a fé sem o ser humano. O ser humano produz cultura para sobreviver e se organizar socialmente. A cultura se manifesta através de símbolos. Não há como escapar. As paredes brancas e o púlpito solitário de Calvino se tornaram, em si, um símbolo. A Bíblia, único vínculo com o concreto que restou aos protestantes, também se encarapita faceira no alto do púlpito, exibindo suas bordas douradas.
A reação cristã correta à dessacralização de seus símbolos não é a de agredir nem verbalmente nem com força, tiroteios, bombas, mortes. Nunca foi. Os momentos históricos em que a Igreja abraçou essa atitude trouxeram muita dissensão interna. Na maioria das vezes, o cristão vai à morte como ovelha ao matadouro e não conduz o ofensor à morte.
A razão, portanto, porque não se pode reagir com mais agressões às ofensas feitas a todos nós, cristãos, pelo wokismo, não é porque minha fé é interna ou abstrata e não se vale de símbolos concretos. É porque a verdadeira resposta bíblica ao escárnio não é o ódio, mas o amor. Mas não podemos confundir esse amor que a Bíblia nos insta a ter pelos inimigos com a síndrome de “ameba moral” da qual alguns cristãos sofrem. A Bíblia também não nos requer tolerância absoluta, ou cegueira voluntária. Crer não é submeter-se a uma lobotomia emocional. Eu, como cristã, me reservo o direito de sentir, de sofrer, de me indignar e até de me irar. Existe a boa ira na Bíblia, a ira que não deriva de ofensa tomada pessoalmente, mas a indignação necessária diante do mal, própria do ser humano. Tenho liberdade para me indignar pela dessacralização de símbolos do cristianismo com os quais convivemos por muitos séculos. Eu me indigno pelas crianças que vão ser formadas sem o respeito ao transcendente e ao sagrado. Me indigno pela conspurcação da memória do primeiro milagre que presenciei em nome de Cristo e teve a participação ativa e necessária do símbolo maior do cristianismo. Não foi diante da “doutrina correta” que nos ajoelhamos para orar naquele dia de desespero, mas diante do símbolo sagrado da cruz.
Mas minha ofensa não vai se traduzir em ódio aos gays, às drags, não vai se tornar vingança, não se valer do escárnio ou outras armas semelhantes para ser aplacada. Minha ofensa vai ao Pai, clamando por Sua misericórdia. Minha ofensa, quando tocada pela graça, se torna compaixão, misericórdia, serviço. Minha fé, tanto transcendente quanto imanente, se comunica com a cultura e a sociedade ao meu redor, não com tapinhas nas costas, mas com um honesto: “Você ofendeu sim, você feriu o que considero mais sagrado, a minha fé. Mas ainda assim eu obedeço ao mandamento de te amar tanto quanto a mim mesma. Eu te perdoo, não porque me considero melhor, mas porque Aquele de quem você debocha cruelmente também te ama.”
— Publicado originalmente na Revista Ultimato.
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