O Céu não é um tédio, Adrilles
Paulo Kogos comenta e refuta um poema de Adrilles Jorge sobre a vida eterna
Meu amigo pessoal Adrilles Jorge publicou em suas redes sociais um poema no qual defende que a eterna felicidade é uma contradição, pois resultaria em tédio. Vejamos:
O tédio é a eternidade.
O fim que renasce é felicidade
O momento feliz só é eternizado
porque acaba.
Ninguém suportaria
a exaustão de um beijo,
de um orgasmo até o fim dos dias.
Um dia descansa sua luz na treva
que acolhe o aconchego
de uma pequena morte.
O olhar doce do primeiro sorriso do filho
morre na ressureição do olhar grato
do filho adulto gerado pela educação
do pai que o abraça ao fim de sua jornada.
O tédio é a eternidade.
O fim que renasce é felicidade.
O fogo da paixão que fenece
se apaga e renasce no amor fraterno
na brasa que aquece
a cinza do tempo de um afeto extinto
que nunca se esquece.
O tédio é a eternidade
O fim que renasce é felicidade.
Até Deus se fez homem
a fim de poder morrer
para poder viver no coração humano
na esperança e na ação
de todo dia ressuscitar.
O fim que sempre renasce
é o jogo de sempre voltar a amar.
(Adrilles Jorge)
O autor afirma, de forma lírica, que até mesmo os maiores prazeres se tornariam insuportáveis caso durassem para sempre, aludindo inclusive ao fato de que o sorriso infantil de um filho pequeno vale por estar condenado a desaparecer na almejada maturidade. Finalmente, o poeta relaciona felicidade ao ciclo do apagar e renascer de uma chama, fazendo até mesmo uma analogia com a morte de Deus feito homem para então ressuscitar.
A consequência lógica do poema de Adrilles é que a felicidade no Céu seria utópica ou indesejável, já que, conforme o ensinamento católico, trata-se de uma felicidade perfeita, contínua e eterna. Venho por meio deste artigo divergir do meu colega de tantos debates.
O que sobra de lirismo no poema, lhe falta em rigor metafísico. A felicidade é a posse usual de um bem e a felicidade absoluta é a posse eterna do Bem absoluto. Qualquer efemeridade denotaria a ausência da plenitude deste fim último, que Aristóteles dizia ser a Eudaimonia (hábito virtuoso da alma) mas sabemos hoje ser a Beatitude, uma contemplação intelectual intuída de Deus, conforme descreve Santo Tomás de Aquino. Esta condição é perene, pois sendo Deus infinito e infinitamente interessante, é impossível que o intelecto da criatura o esgote ou dEle se canse. Trata-se daquilo que Adrilles parece achar paradoxal: um maravilhamento eterno, um incorruptível deleite. Mesmo o infinito intelecto divino não se entedia, pois Deus basta a Si mesmo. Sua Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição não foi uma tentativa de quebrar o tédio, mas um ato de pura caridade pela humanidade necessitada de rndenção, e que implica exatamente a vitória total do Ser e da Vida Eterna sobre o nada e a morte.
As coisas finitas e contingentes cansam por não serem plenas em si mesmas. Elas foram criadas para servirem de meio e não como fins últimos, de tal maneira que, por natureza, não preenchem o vazio infinito na alma humana. Este, nos lembra Santo Agostinho, só pode ser preenchido por Deus. Há um certo taoísmo no poema de Adrilles, como se a felicidade fosse o Yang e sua privação fosse o Yin, mas na sólida metafísica agostiniana fica evidente que não há ato de Ser na negação do Ser.
As trevas são apenas ausência de luz, enquanto a noite possui uma ontologia própria, seja ela o descanso ou a boemia. O dia sem a noite seria insuportavelmente tórrido, de fato. E a noite seria gélida e tenebrosa sem a alternância com o dia. Esta realidade, contudo, não decorre de uma repelência inerente ao absoluto, mas do fato de que não se deve tomar por absoluto aquilo que é relativo. A ternura da alternância entre o dia e a noite ou entre as estações do ano remete, pelo contrário, a uma noção de eternidade. Não se trata de finitude, mas de harmonia, de justa medida de todas as coisas que requer uma medida absoluta como paradigma. É como as notas musicais que se alternam em intervalos muito bem definidos. O deleite que elas nos proporcionam não advém só da nota tocada no presente nem do fenecimento total das outras notas, mas numa noção de continuidade que repousa na memória das notas passadas e na perspectiva das notas futuras. Anton Webern afirmou que a música é a Lei Natural no que diz respeito ao sentido da audição. Em assim sendo, não é senão o aprazível reverberar da Lei Eterna.
Temos, por outro lado, uma natural aversão à fortuidade ou extemporaneidade. Tal fato decorre do nosso apego ao lógico e cognoscível. É verdade que os trejeitos infantis de um filho pequeno que encantam os pais seriam monstruosos num adulto com síndrome de Peter Pan e que anos gastos em pródiga autoindulgência se tornariam depressivos; mas não pelos motivos defendidos por Adrilles e sim porque fogem às suas funções e impedem que o indivíduo atualize plenamente suas potências. Quando fugimos de tais aberrações é porque estamos justamente busca da ordem e da plenitude, e portanto de um ordenador que dê sentido e proporção a todas as outras coisas. Buscamos a absoluta e imperecível Verdade, Bem e Beleza.
Paradoxalmente, há uma intersecção entre o poema de Adrilles e o epicurismo. Ora, como isso, se Epicuro afirma que na morte não mais somos, enquanto meu amigo poeta diz que só somos porque morremos? Para o filósofo ateniense, a felicidade estava também ligada às ausências (de medo e de sofrimento). Mas no epitáfio de muitos seguidores de Epicuro lê-se: “Eu não fui; eu fui; eu não sou; eu não me importo”. Ora, se ele foi e por isso nunca foi, então ele também nunca foi feliz.
Por fim, cito como provável influência de Adrilles uma cosmovisão cíclica similar à dos budistas e hindus. Tudo emana do grande e indistinguível brahman, o princípio absoluto, e para ele volta, num ciclo interminável de nascimento e morte. A sólida filosofia cristã, por outro lado, estabelece um princípio e um fim, um alfa e um ômega. Se as coisas fossem eternas para trás o princípio não seria causa eficiente; e se não houvesse uma condição terminal na qual as coisas se consumam, não haveria causa final.
Tudo o que existe deriva de Deus seu ato de ser e busca a Deus como modo de operar. A eternidade está impressa na nossa natureza e a felicidade não lhe pode ser incompatível. Sob uma abordagem das ciências econômicas, podemos dizer que um bem não causa fastio, pois aquilo que o causa não é valorizado como um bem. A visão beatífica de Deus, essência do estado celeste da alma, é o nosso bem por excelência e não pode deixar de sê-lo.
A felicidade plena nesta Cidade dos Homens é utópica, pois não está em lugar algum (utopia significa nenhum lugar). Mas a Jerusalém Celeste é um lugar. Por mais portentoso que seja um resort de férias, nunca temos pleno usufruto de nossa estadia nele, pois sabemos que ela vai acabar e ao mesmo tempo temos saudades do que deixamos no lar. Mas o Céu é nosso lar por excelência e ele não acaba.
– Paulo Kogos é economista, professor, empresário e a apresentador do canal Ocidente em Fúria.
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