CRÔNICA

O homem de saias e o passado recente

Renan Rovaris · 3 de Agosto de 2024 às 11:09 ·

O rapaz vestia uma saia rodada e todos passavam por ele como se fosse a coisa mais normal do mundo

Era sábado e fazia frio. Eu descia a escada rolante do supermercado e, súbito, aquelas pernas me roubam os olhos. Eram brancas e grossas, eu diria até roliças, e roçavam uma na outra ao ponto de atiçar os furúnculos. Não, minto. Não foram exatamente as pernas que me pegaram. Foram os shorts que o rapaz vestia. Shorts jeans, apertados até deixá-lo sem ar, ao limite da asfixia, do estrangulamento sádico e cruel.

Atrás de mim, ouço uma vozinha cínica:

— Piriguete não sente frio...

Eu, indignadíssimo, viro e dou-lhe um pito:

— Ei, respeite este senhor de shorts!

Fiz toda essa introdução para falar de outro episódio que me ocorreu dias atrás. Dessa vez, longe da esterilidade dos shorts jeans, tratava-se da leveza e do arejado de uma longa saia rodada, cheia de babados e camadas sobrepostas, de um tecido azul-marinho belíssimo.

O rapaz, encostado numa árvore da praça, conversava gesticulosamente com a moça. Deviam ter uns vinte e tantos anos cada um. Da cintura para cima, ele vestia uma jaqueta de couro sobre uma camisa gola polo de algodão. Cobrindo-lhe as pernas até os tornozelos, a já descrita saia. Não reparei nas roupas da moça. Desculpem.

Não houve nenhuma reação. Ninguém falou nada, nem cochichou. Todos passavam pelo rapaz de saia como se não o vissem. Era como se, com essa indiferença, com esse tom de invisibilidade, dessem sua aprovação. E, de repente, me dou conta de que o homem brasileiro pode, como toda mulher, desnudar as pernas ou cobri-las segundo mais lhe agrade.

Numa de suas crônicas, Nelson Rodrigues escreve: “como é antigo o passado recente.” E eu repito, com mais alguma exclamação: como é antigo o passado recente deste país! Quem, em 2010, consideraria o homem brasileiro vestindo saia?

Outro dia, assisti ao vídeo de um rapaz parcialmente careca que falava, com seu peito cabeludo e tatuagens de beija-flor nos ombros, sobre como havia sido seu primeiro dia no trabalho vestindo roupas de mulher. Ele exibia, com certo orgulho televisivo, seu vestidinho tomara que caia preto com estampa de laranjas — ou eram limões? Não tenho certeza, mas garanto-lhes alguma fruta cítrica.

Esqueci de mencionar que o rapaz falava em inglês. Um amigo meu já me disse que há algo de impróprio no homem brasileiro que usa saia:

— Isso não é coisa para povo de terceiro mundo. Usar saia é para homens americanos e europeus. O homem brasileiro não tem aptidão para vestir-se como mulher — insistia ele.

Eu recuo, meio agredido:

— Mas o que é isso, meu caro? Não é para tanto. O brasileiro pode o que quiser. Já chamamos nossas igrejas de “church”.

— Eu não entendo este mistério. Você entende? Somos um país novo, sem saneamento, sem educação, sem Prêmio Nobel. Quando foi que o brasileiro decidiu que sua vida era monótona e resolveu vestir saias?

Renan Rovaris é escritor, designer e colaborador do BSM.

 


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