O que é um santo?
A santidade é isso: nossa cristificação, uma resposta comum a um chamado ordinário, a sermos quem Deus quer que sejamos
Confesso que, no auge dos meus poucos trinta anos, ainda me pego chorando com certos filmes que talvez não causem emoção alguma em outras pessoas, ocupadas demais para assistir uma cena de O Senhor dos Anéis ou do melhor Homem-Aranha já produzido, o número 2 do Sam Raimi. É claro, sou apreciador dos livros, mas há algo de mágico nos filmes. As expressões, a música, o tom da cena e a condução do ato são tudo aquilo que fica de fora do “texto coisificado”.
Mas não é só isso. Imaginem podermos ver em toda a criação uma Ode ao Criador. Fragmentos de uma centelha divina que estão cravados no mais íntimo de nossas almas e que, por vezes, se exteriorizam em nossas próprias criações. É isso o que acontece numa pequena cena de O Batman, um quadrinho novo que me marcou com uma explicação extremamente profunda sobre o que é uma vocação. Acontece que Bruce perde a memória numa luta contra um de seus inimigos. A cidade cai num caos profundo porque o Batman sumiu, mas a vida do Bruce vai bem, até demais. Porém, num determinado momento, depois de ver tão grande caos na cidade, Bruce Wayne tem um tipo de epifania, um chamado, um estalo. Ele sente que há algo errado. Ele sente que sua vida guarda algo mais que apenas riqueza. E ele não está errado. Numa discussão com Alfred, que tenta de qualquer maneira impedir que Bruce se torne novamente o homem morcego, após já ter ficado claro para ele mesmo que há algo mais em sua vida, ele diz: “Alfred, eu sou o Batman... Você sempre esteve lá, desde o começo, nas minhas duas vidas para me ajudar a me tornar o que eu precisava ser porque você me entende. Eu poderia conviver comigo mesmo sabendo o que sei agora, simplesmente vivendo, sem querer nem ter tentado me tonar o Batman novamente?”
Agora, imaginem essa cena. A cena de, talvez, ver até mesmo em casa, pessoas que querem que nos livremos do fardo de sermos quem fomos chamados a ser. Me desculpe o leitor mais velho, talvez menos afeiçoado ao conto de fadas, mas preciso ainda de dois outros exemplos.
O segundo é o de Peter Parker, o herói pobre que possui a estranha capacidade de ser um ser humano normal em um mundo anormal quando não está de máscara. Sua vida é um caos: sem tempo para o trabalho, sem tempo para o namoro, sem tempo para uma carreira, aluguel atrasado e nada de carrões. Sua vida social é um turbilhão, e o é porque essa é a menor parte, a parte de menor importância. Acontece que no segundo filme ele decide abrir mão da vida de super-herói. Cansado de não corresponder às expectativas do mundo ele abandona o traje, o joga numa lata de lixo. Aqui a sequência segue com um emocionante diálogo com tio Ben, onde Peter abre mão de seu chamado.
— Todas as coisas em que você tem pensado, Peter, me deixam triste.
— Não dá pra entender? Eu sou apaixonado pela Mary Jane.
— Você sabe que eu entendo. Mas achei que aprendera o que é responsabilidade.
— Você não sabe como eu me sinto.
— Peter, sempre falamos de honestidade. E bondade, justiça. Muitas vezes eu esperava que... tivesse coragem para trazer esses sonhos para o mundo.
— Não posso mais viver esse sonho. Quero viver a minha vida.
— Você recebeu um dom, Peter. Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades.
— Sou só o Peter Parker. Não serei o Homem-Aranha, nunca mais.
Dali em diante, tudo vai bem. Ele recupera suas boas notas na faculdade, começa a se entender com os amigos, tem tempo para visitar sua tia e agora começa a ter tempo para dedicar ao amor de sua vida. Mas não é assim que a vida funciona, não é mesmo?! O chamado nunca cessa. Peter se depara com um incêndio num prédio. Mas ele não é mais o Homem-Aranha. Não há pode reses para ajudá-lo como não há graça santificante quando estamos em pecado. Peter se arrisca e num esforço totalmente natural (sim, natural) ele salva uma garotinha. Mas houve um problema. Enquanto é tratado por uma equipe médica, Peter houve o pior: havia uma senhora no prédio, um andar acima. E ela não sobreviveu. E é aqui que entra um diálogo especial com a tia May. Durante uma mudança, tia May chama o vizinho para uma ajuda e Peter chega no meio do trabalho. O menino pergunta se o Homem-Aranha sumiu, e o diálogo segue:
Harry: — Oi, Peter! Você tira fotos do Aranha, não tira?
Peter: — Tirava.
Harry: — Cadê ele?
Peter: — Ele parou.
Harry: — Por quê?
Peter: — Ele quis tentar outras coisas.
Harry: — Ele vai voltar, não é?
Peter: — Não sei.
Tia May: — Você nem imagina quem ele quer ser… o Homem-Aranha.
Peter: — Por quê?
Tia May: — Ele reconhece um herói quando vê um. Existem poucos sujeitos no mundo voando pelo céu e salvando idosas como eu… Deus sabe que crianças como o Harry precisam de um herói, pessoas se sacrificando pelo próximo. Dando um bom exemplo para nós. Todos adoram um herói. Pessoas ficariam na chuva durante horas só para ver de relance aquele que as ensinou a continuarem acreditando no bem. Eu acredito que exista um herói em todos nós. Que nos mantém honestos, nos dão forças… nos enobrecem e, no fim, nos permitem morrer com orgulho ainda que, às vezes, tenhamos que ser firmes e desistir daquilo que queremos… até mesmo dos nossos sonhos…
Após isso, o vilão sequestra Mary Jane, seu amor, e o único que pode salvá-la não é esse jovem que vive ignorando seu chamado, mas aquele outro, que está ocupado demais se sacrificando pelas pessoas. É um ponto de virada muito maior que a jornada do herói! É hora de reconhecer a vocação. É hora do sacrifício.
É espetacular como o chamado muda o homem. E agora, caro leitor, a última cena.
O filme é O Senhor dos Anéis. Especificamente, uma das cenas finais do terceiro filme da trilogia. Agora imaginem aquele momento no portão de Mordor, depois que Orcs mostram a malha de mithril de Frodo para todo o exército de homens, sinalizando a vitória do senhor do mal que deveria ter obtido o Um Anel. Tudo parece perdido, não há mais um passado para onde retornar, o céu desabou e até o ar se recusa a oferecer seu sopro de vida aos homens. Aragorn toma a dianteira e diz: “Mantenham suas posições. Filhos de Gondor, de Rohan, meus irmãos. Eu vejo em vocês o mesmo medo que poderia tirar a minha coragem. Pode chegar um dia em que a coragem dos homens falhe, quando nós abandonaremos nossos amigos e quebraremos todos os laços de amizade, mas esse dia não é hoje. Uma hora de sofrimento e escudos quebrados, quando a era dos homens desabará, mas esse dia não é hoje. Hoje nós lutaremos! Por tudo que gostamos nessa terra boa, eu vos peço, fiquem firmes, homens do Oeste!”
É então que o enorme portão de ferro negro se abre. A última batalha será travada ali, no terreno inimigo. Aragorn olha para seus irmãos, a cena desacelera, ele ergue a espada como os cruzados na recitação do creio e faz a única coisa a ser feita. Em meio a um discreto sorriso, diz:
— Por Frodo!
Bruce, Peter e Aragorn são santos? Não sei. Talvez o sejam. Talvez seja a fagulha divina querendo iluminar nossas criações. Talvez seja essa força imparável da santidade querendo falar conosco em todos os momentos de nossa vida, mesmo nas histórias em quadrinhos. Ou talvez eu esteja vendo elfos onde eles não existem. Seja como for, uma coisa é certa: o homem e seu destino são inseparáveis. Mudar sua vocação é mudá-lo a si mesmo. Quando um homem se dedica ao serviço de Deus, toda sua atividade e sua própria pessoa adquirem qualidades verdadeiramente divinas e é disso que eu estou falando. Se a entrega é firme, toda a vida desse homem se conforma ao ser de Deus. Ele será um santo de corpo inteiro. Essa entrega é, nesse caso, uma profunda conformidade que tende, segundo São João da Cruz, à união em um único espírito das duas naturezas, divina e humana.
A santidade é isso: nossa cristificação, uma resposta comum a um chamado ordinário, a sermos quem Deus quer que sejamos. A sermos o herói que se lembra do chamado, que abre mão do mundo e que se entrega ao sacrifício, se preciso for. A santidade é a mais comum das vidas e as vezes se cumpre no seio da família.
E é aqui onde eu faço uma outra confissão. Hoje, pela manhã, eu chorei novamente, como nos filmes. Chorei ao ler uma frase de uma mãe que dizia:
— O caminho para a santidade é um caminho para todos. Cada um de nós pode caminhar por ele. Não quero que o Carlo seja lembrado como um super-homem. Carlo era uma criança e depois um adolescente como muitos outros, no entanto, sempre quis e soube confiar no amor de Deus.
Rogai por nós, Carlo Acutis, para que possamos ver a santidade nos momentos mais comuns de nossas vidas. Nos ensine a continuar acreditando no bem.
— Lucas Fófano é católico, caipira, professor e editor literário.
"Por apenas R$ 12/mês você acessa o conteúdo exclusivo do Brasil Sem Medo e financia o jornalismo sério, independente e alinhado com os seus valores. Torne-se membro assinante agora mesmo!"