Precisamos falar (de novo) sobre a santidade
Imaginem vocês, a Igreja cometeu o absurdo de reconhecer a Santidade de um animal vertebrado, mamífero e pertencente ao gênero humano: o mais comum dos garotos!
Dia desses, em um artigo, surgiram dois grandes absurdos. O primeiro foi que um jornal publicasse um dos meus artigos e o segundo que, neste mesmo artigo, eu cometesse a grandiosa cagada de dizer que o Santo é o mais comum dos homens. Claro, pelo visto eu estava tão perdido quanto uma pessoa que viajasse no tempo e encontrasse um garoto jogando Super Mario, vestido com uma camiseta também vermelha, surrada e de gola esgarçada, indo à Missa e falando de Deus com tanta naturalidade quanto quem falasse de sedevacantismo.
Acontece que eu não sabia que, aparentemente, a Igreja mudou, a santidade mudou e agora ela só deve (sim, deve e não pode) ser alcançada por um rol de escolhidos, como uma aristocracia de manto branco ou camisa social.
Imaginem vocês, a Igreja cometeu o absurdo de reconhecer como Santo um animal. Mais que isso, um tipo de animal vertebrado. E o pior, um mamífero. Mas não para por aí. Entre os mamíferos, um bípede, entre os bípedes o mais terrível de todos eles: um homem. Mas, se acalmem, ainda fica mais estranho. Entre os homens todos, um tipo vulgar, um garoto. E entre todos os garotos, o tipo ainda mais horrendo: um garoto comum.
Sim! Vocês não sabiam e nem eu, mas a santidade só pode ser alcançada, hoje, se você usar calça e camisa social com um pequeno cinto, e a camisa deve vir pode dentro da calça — caso contrário, nada de canonização. Além disso, o figurino não basta, pois há, pelo visto, uma dificuldade de acesso quanto à data em que você nasce ou vive e o tipo de vida que leva. Se for surfista, a beatificação parecerá brincadeira, pois há uma enorme fila composta por pessoas que usaram vestes mais modestas e com corte mais fino. Existe, por exemplo, a indignação de que Carlo Acutis seja representado nas paróquias locais como um garoto que usava camiseta e calça jeans porque ele se parece demais com o personagem de De volta para o futuro, Marty McFly. Mas o que há de incomum que um Santo que faleceu em 2006 se parece com um personagem ambientado em 2015? É que ambos usavam roupas comuns e, pelo visto, os fatos comuns são uma nota de exclusão do processo para o Dicastério para as Causas dos Santos.
Agora, imaginem o absurdo de, se um dia, a Igreja declarar beato alguém que fumava. Isso já é algo que foge à regra e à moralidade, não cai bem sair por aí com a camisa fedendo à cigarros e quem dirá dar uma cuspida no chão. Mas, para surpresa do garoto moderno, este é B. Pier Giorgio Frassati, o homem das oito bem-aventuranças, como declarou São João Paulo II, e entre as suas muito comuns habilidades estava a de fumar. Sim! O fundador da Sociedade dos Tipos Estranhos cujos membros eram “desonestos e vigaristas” contava piadas, gostava de escaladas, excursões e de colocar apelidos nos amigos. Coisas comuns demais para ser alçado ao rol dos santos de hoje. Pier Giorgio é Patrono dos Jovens Vicentinos pois dedicou sua vida aos pobres e teve uma vida de tal forma comum que, em seu velório, seu pai, jornalista e senador italiano, declarou não reconhecer seu filho quando viu a multidão de milhares de pessoas comuns no velório de um rapaz comum declarando milhares de orações comuns pela ajuda comum de simplesmente matar-lhes a fome quando os visitava nos becos mais comuns da cidade de Turim.
É de Chesterton uma maravilhosa e terrível frase que mostra bem a situação em que estamos entrando. “Não é correto afirmar que somente os que criam falsos deuses incorrem em idolatria, também são idólatras os que criam falsos demônios; aqueles que fazem com que os homens temam a guerra, o alcoolismo e a situação econômica, distraindo-os do fato de que é a covardia, a desordem e a corrupção espiritual o que eles realmente devem temer.”
Estamos deslocando o quadro de normalidade para algo quase inalcançável, hoje. Quando normalizamos o comportamento covarde nós forçamos o comportamento normal para o espectro do comportamento extraordinário e o comportamento extraordinário para o do impossível. E assim nascem os falsos medos. O medo de que Deus queira que simplesmente digamos sim a uma vida comum, uma família comum, com orações comuns e uma santidade comum. Nos esquecemos, porém, que o próprio Deus assumiu uma vida comum e não há indicação alguma de que Ele tenha ignorado algum trabalho, como a fabricação de uma cadeira, com a desculpa de que tinha de falar com o Pai lá de cima. O fato comum da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, de nossa redenção, foi algo de mais extraordinário que já pode existir, pois até mesmo a sua morte foi como a de um homem comum.
Pier Giorgio era mais um rapaz comum, com roupas comuns de sua época, assim como o foi Carlo Acutis. E se são as roupas o vetor primordial de santidade, esperemos o movimento iconoclasta que irá despir os Apóstolos com a desculpa de que Judas também se vestia daquela forma.
— Lucas Fófano é católico, caipira, professor, editor literário e veste roupas exageradamente comuns.
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