IGREJA

Solve et coagula: a nova estratégia da CNBB

Especial para o BSM · 28 de Fevereiro de 2024 às 22:57 ·

Quando um esquerdista acusa alguém de algo, é justamente porque ele está fazendo o mesmo, só que numa escala muito superior. Assim estão agindo os bispos e padres da teologia da libertação


Por Padre Genésio Alberto

Há 43 anos, Leonardo Boff publicava o livro que lhe mereceu a punição de “silêncio obsequioso” por parte da Congregação para a Doutrina da Fé, cujo prefeito era então o Cardeal Ratzinger. Trata-se do célebre “Igreja: carisma e poder”, em que aplicava à eclesiologia os mesmos esquemas da análise marxista, “dando por certo que o eixo organizador de uma sociedade coincide com o modo específico de produção que lhe é próprio, e aplicando este princípio à Igreja” (Congregação para a Doutrina da Fé, Nota Doutrinal sobre o livro “Igreja: carisma e poder”, 31.03.1985).

Muito atento ao debate intelectual, Ratzinger limitou-se a apontar o erro especulativo, sem efetivamente perceber que a denúncia teórica não suprimia as ações políticas, e ignorando, inclusive, o princípio alquímico do movimento revolucionário: “solve et coagula”, “dissolva e coagule”.

A esquerda sempre atuou com esse mecanismo muito autoconscientemente: primeiro, você destrói a noção mesma da autoridade e da verdade; depois, você assume toda a autoridade e impõe toda a sua “verdade”, de maneira absolutista.

Por isso, quando um esquerdista acusa alguém de algo, é justamente porque ele está fazendo o mesmo, só que numa escala muito superior.

Assimilando-se essas premissas, vale a pena ler um trecho do livro supracitado para compreender um fenômeno eclesial atual:

“Na Igreja os membros que detêm os meios de produção religiosa, que é simbólica, detêm também o poder e criam e controlam o discurso oficial. Sociologicamente considerando, na Igreja vigora uma inegável divisão e desigualdade: um grupo produz o material simbólico e outro apenas o consome; há o ordenado que pode produzir, celebrar e decidir e o não-ordenado que assiste e se associa. Toda a capacidade de produzir e de decisoriamente participar dos excluídos deixa de ser aproveitada. O grupo detentor dos meios de produção simbólica elabora sua correspondente teologia, que vem justificar, reforçar e socializar seu poder, atribuindo origem divina à forma histórica de seu exercício. Daí é que a maneira centralizada, monárquica, excludente de seu funcionamento, a concepção doutrinária da revelação e da salvação são tidas como intocáveis e irreformáveis porque queridas (nesta concreta forma) por Deus.

Esta compreensão, entretanto, está mascarando o real conflito que se encontra subjacente: o poder de uns sobre os outros, poder que não quer abdicar de seus privilégios e direitos, atritando com direitos invioláveis da pessoa humana (de participar, de produzir simbolicamente, de expressar-se livremente etc.).

Ao cristão leigo se faz crer que, pelo fato de ser simples cristão, está diante de fatos divinos que o excluem e o subordinam, inapelavelmente, a um grupo cujo poder vem de cima. Isso é tanto mais grave quanto esta compreensão vem dogmatizada e feita irreformável. Ao leigo nada resta senão aceitar que nele há direitos reconhecidos pela Hierarquia mas que não podem ser exercitados porque não encontram cabida na forma de organização eclesial. Os direitos do homem perdem assim seu caráter inalienável e passam a ser violados.

Insistimos: não se discute sobre a legitimidade da autoridade na Igreja; ela existe e é querida por Deus; questiona-se a forma histórica excludente de sua organização e da teologia, criada sobre ela, exercendo a função de justificativa ideológica das relações desequilibradas de poder entre os membros da mesma Igreja.

A desigualdade estrutural produzida pela detenção dos meios de produção simbólica por parte de um grupo gera uma situação de permanente conflito com os direitos humanos” (Boff, L., Igreja: carisma e poder, Ática, São Paulo: 1994, pp. 82-83).

Ora, os mesmos libertadores que desde a década de 1980 acusavam a hierarquia da Igreja de terem a “hegemonia dos meios de produção simbólica”, tendo alcançado o poder, querem assegurar-se essa mesma hegemonia, de modo tirânico, despótico, em desfavor, porém, do bem espiritual da Igreja.

Há alguns dias, foi publicado o livro “Influenciadores Digitais Católicos. Efeitos e perspectivas” (Vv.Aa., Ideias & Letas e Paulus: 2024), que se debruça sobre a atuação de alguns influencers católicos e analisando-os a partir do seu alinhamento com as opções eclesiológicas da Igreja no Brasil.

Na apresentação do livro, o já bastante conhecido Dom Joaquim Mól apresenta importantes ponderações, as quais mostram uma verdadeira tentativa de amordaçamento dos Influenciadores Digitais Católicos (IDC, no texto) por parte da alta hierarquia brasileira.

Vale a pena citarmos os trechos mais importantes da Apresentação:

“Do ponto de vista sociopolítico, a pesquisa revela que ações de IDCs estão ligadas, de modo geral, à radicalização de movimentos de extrema direita, à disputa política pela moralização ideológica das arenas de debate no Brasil e ao crescimento de ativismos digitais em favor de causas sociais.

Há pelo menos três modos amplos de atuação política entre os IDCs analisados. O primeiro é o ultraconservadorismo, que apresenta uma defesa das desigualdades como algo natural e fruto de escolhas individuais, além de um combate aberto aos movimentos progressistas. Em tais casos, o engajamento digital está a serviço de um projeto de Igreja mais conservador. O segundo é o ativismo progressista, no qual o IDC promove causas sociais específicas que funcionam como pautas de luta para exercer pressão sobre governos e outros atores sociais. Neste caso, a influência digital também permite ações de propulsão ativista. Por fim, há uma isenção programada, por meio da qual os IDCs se concentram em assuntos religiosos, espirituais e, sobretudo, devocionais, evitando polêmicas e posicionamentos abertos, sem uma preocupação com a transformação social. Essa neutralização discursiva atende aos objetivos mercadológicos e de visibilidade. O resultado é um processo de alienação do público e de fortalecimento do status quo, além de uma percepção individualista da dinâmica social e da própria vivência cristã.

Do ponto de vista teológico-eclesial, a pesquisa aponta que a presença em mídias digitais para comunicar em nome da Igreja, requer alinhamento com os elementos básicos de sua práxis: Bíblia, Tradição e Magistério. Essa tríade, contudo, deve ser interpretada em comunhão com a comunidade eclesial hodierna e com o atual pontífice, Francisco, a partir do reconhecimento das transformações da sociedade e de suas demandas presentes, realizando a articulação entre doutrina e pastoralidade.

Em alguns dos IDCs, o discurso e a práxis denotam efetivamente um sentido do Evangelho e comungam com a Igreja proposta pelo Papa Francisco, encarnando uma influência digital marcada pelo testemunho cristão e pela confessada intenção de evangelizar na Igreja em Saída. Em sentido oposto, porém, há uma influência digital apologético-moralista, que, embora apresente elementos vinculados à devoção e à fé populares, é marcada por uma pretensão formativa e moralista, a partir de leituras pessoais e particulares acerca da verdade, mediante uma autoridade de ensino manipuladora. Promove-se uma formatação da vivência cristã baseada em fórmulas de fé sem conexão com a realidade, centrada fortemente em moralismos permeados por elementos ideológicos e políticos. Soma-se a isso a crítica desmedida e infundada à estrutura institucional e à hierarquia eclesiais. Por fim, manifesta-se uma influência digital marcada pela neutralidade da mensagem ou pela proposição light do Evangelho, em perspectiva psicologista-humorística. Ao centrar e reforçar a individualização da solução das questões humanas, tal influência descarta o elemento comunitário, o vínculo eclesial e a práxis cristã.

(…)

Ainda que haja exceções, a expressão de conteúdos de IDCs analisados se detém na construção de estereótipos, baseados em premissas moralistas, fundamentalistas, dogmáticas, psicologistas, doutrinais. Emerge um cristianismo apenas de fórmulas e não de sentido, que leva à caracterização de grupos conservadores, com discursos excludentes e destrutivamente críticos em relação à linha institucional da Igreja, seja em nível mundial ou no Brasil, representada pela CNBB.

Existem também muitos influenciadores que são ministros ordenados, o que é diferente de entender que existam ministros ordenados influenciadores. Muitas das práticas desses presbíteros, por exemplo, estão baseadas em vieses narcísicos, usando a própria vida eclesial como elemento peculiar e de ativação da curiosidade do público, e acionando o humor como instrumento de engajamento, simplificação dos conteúdos religiosos, visão reducionista de catequese. Aqui, o papel de seus superiores diretos no episcopado adquire relevância, no sentido de orientar a atuação de tais IDCs, em comunhão com a Igreja e no respeito às diversas sensibilidades e vivências sociais, e em corrigir eventuais desvios (Op. Cit., pp. 17-20, negrito nosso).

Apesar de longa, a citação demonstra o viés com o qual o estudo foi produzido: ou seja, a sua adequação ao modelo libertador de Igreja, com ênfase naqueles aspectos seletivos do Magistério do Papa Francisco que lhe forneceriam respaldo.

O esforço nada modesto do estudo se justifica pela extrema descredibilidade de que gozam os libertadores entre o laicato atual, que já aprendeu a reconhecer a sua entonação discursiva, os seus maneirismos verbais, os seus cacoetes retóricos, sabendo não apenas identificá-los e denunciá-los, mas também refutá-los. E isso é péssimo… para eles.

Para os libertadores, “eclesiologia” equivale a “ideologia política”.

Quem explorou esse assunto da maneira mais clara foi o falecido Pe. João Batista Libânio, em seu “Cenários de Igreja” (1ª. Edição, Loyola, São Paulo: 1999). Aí, fica bastante nítida a ideia de que o cenário do que ele chama de “Igreja da práxis libertadora” é o preconizado pela sua obra. Como o livro parte da perspectiva do exercício do poder, fica bastante evidente que, ao salientar a horizontalidade das comunidades e das lideranças leigas, segundo ele decorrentes diretamente do Concílio Vaticano II (pressuposto assumido por ele como auto-evidente, embora seja em si mesmo indemonstrável), o modelo libertador é aquele que precisa prevalecer sobre os demais.

Ora, como a teologia da libertação perdeu completo prestígio entre o povo, visto que foi utilizada como ferramenta para a formação de uma militância que acabou por se tornar base de um partido cujos principais integrantes foram condenados por corrupção (aqui, estamos na esfera dos puros fatos, não dos discursos ideológicos), a tal opção pelos pobres viu-se desmentida como opção pelo poder e pelo dinheiro. O discurso, simplesmente, tornou-se “incolável”.

Por isso, a existência de vozes dissonantes precisa ser abafada justamente para que os ares de importância e unanimidade (o que eles chamam de comunhão) sejam preservados no teatro dos discursos. O descolamento entre o povo e a hierarquia é tão grande que o fosso institucional já não é mais disfarçável.

O que os autores do estudo não percebem é que o seu desespero para garantir a hegemonia na produção dos discursos – a mesma hegemonia denunciada por “Igreja: carisma e poder” e que levou Boff a espernear histericamente contra as autoridades vaticanas, até hoje fingindo-se de vítima das mesmas – não tem como obstáculo a rede de influenciadores, mas o povo em geral. Iludem-se eles ao pensar que, silenciadas algumas vozes, a teologia da libertação voltará a gozar de prestígio público e a ser apreciada pelo povo. Não vai.

O pânico por conservar a hegemonia é autoconfissão da própria inverdade do discurso e da autoconsciência dos atores acerca disso. A verdade não necessita de hegemonia; para ela, basta uma massa crítica: no caso, alguns influenciadores que dão vazão à insuportação de um povo que apenas quer ter o direito de ser católico e é impedido justamente por aqueles que deveriam impulsioná-los nesse processo.

No plano dos fatos, qualquer cerceamento da liberdade de expressão relativamente aos leigos é, em si mesma, ineficaz; e a única coisa que conseguiriam com a sua eventual tentativa de controle é aumentar o prestígio e o heroísmo do laicato. Quanto aos padres, não há muito de que acusar alguém que não se rebela contra o despotismo eclesiástico e que se limita a pregar e a ensinar. A última década demonstrou que as vítimas da perseguição interna institucional cresceram justamente com os golpes que se lhes davam, até o ponto de se tornarem gigantes de influência e admiração.

Enquanto a alta hierarquia brasileira quiser transformar a Igreja no quintal dos partidos de esquerda, não encontrará no povo nenhum reconhecimento e apreciação, independentemente dos influenciadores digitais. Passadas tantas décadas de ocupação socialista das sacristias, púlpitos e altares, já não é mais possível despersuadir ninguém de que tudo isso se trata apenas de instrumentalização ideológica. Falta aos bispos a coragem humilde de reconhecer os seus erros, ao invés de ensaiarem uma perseguição a padres e leigos que apenas querem apenas amar a Igreja Católica de todos os tempos.

 


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